Depoimento de um sobrevivente
Quando a cidade de Cupira era Vila, realizou a sua primeira feira livre, num domingo 15 de junho de 1896, sendo Prefeito de Panelas à qual pertencia, o então Capitão Joaquim Fernandes da Costa.
Treze anos após, foi celebrada a primeira Missa em Cupira, no dia 26 de maio de 1909, pelo Vigário de Panelas, Padre Francisco de Luna Sobrinho, isto também num dia de domingo. Foi aí que o referido Sacerdote conseguiu com as autoridades municipais e habitantes influentes da então Vila, a transferência da feira pública para a quarta-feira, em vez de aos domingos, o que permanece até hoje.
No ano de 1936, a Vila de Cupira foi palco de violentas lutas encetadas por fanáticos religiosos. Contou-nos José Martiliano de Luna, nascido no Sítio Serra Verde, hoje do Município de Cupira, Pernambuco, precisamente no dia 4 de dezembro de 1899, às 5 horas da manhã, que conheceu bastante a pessoa do líder fanático-religiso alcunhado de "PADRE CÔCO".
José Martiliano de Luna exerceu no período de 1930-1940, as funções de "Agente de Polícia", mais popularmente chamado de "Inspetor", cujo cargo não era como nunca foi, no interior, remunerado. A figura do "Inspetor de Polícia" sempre foi mal vista pela maioria dos rurícolas, embora respeitada, pois, bastava uma denúncia aos Delegados e a pessoa denunciada era presa. Era necessário proteção política e coragem para brigar e prender gente, para se conseguir esse ofício. Ainda hoje, quando se deseja tirarum gracejo sobre remuneração, diz-se:
"BOM É SER INSPETOR E SE APOSENTAR
COM O DOBRO DOS VENCIMENTOS."
A "Guerra de Gravatá-Açú" teve o seu começo no dia 23 de maio de 1936, mas tudo da sua história, foi a partir de 25 de janeiro do mesmo ano. O modesto trabalhador rural com apenas 23 anos de idade, chamado JOÃO CÍCERO AMARO, filho de Cícero Amaro da Silva, residia no Sítio Serra Verde, do 2º Distrito de Cupira, então Vila do Município de Panelas.
João Cícero Amaro adoeceu em decorrência de uma infecção não identificada e estava febricitante, quando por aquelas pairagens passou o primeiro avião. Além da febre alta, João Cícero tomou grande susto com a zuada provocada pelo aeroplano, causando assim um estado de choque, deixando-o quase louco, chegando a delirar. A genitora de João Cícero, ardorosa devota do Padre Cícero Romão Baptista, que havia falecido no Juazeiro, Ceará, e daí nota-se que o seu esposo chamava-se CÍCERO e um filho que havia de JOÃO CÍCERO, achou por bem incutir no filho insano, que ele estava com 'O ESPÍRITO DO PADIM CIÇO NO CORPO", e que deveria passar a aconselhar a todos os vizinhos que iam lhe visitar, para saber do seu estado de saúde, com as mesmas palavras que o "SANTO DO JUAZEIRO" costumava dizer:
"MEUS AMIGUINHOS, NÃO BEBA, NÃO FUME,
NÃO JOGUE, NÃO FAÇA NADA DE EXTRAVAGANTE,
QUE EU GARANTO A SUA SALVAÇÃO."
O genitor de João Cícero exercia a profissão de fogueteiro e muito católico, gostava de promover novenas, rezar terços, fazer promessas, e tinha um grande Oratório em sua casa, tendo intensificado essa prática religiosa depois de aceitar a idéia fixa do seu filho João Cícero de que estava "apoderado do espírito do Padim Ciço do Juazeiro."
Num ambiente do mais inculto na Zona Rural de 1936/1940, onde não havia sistema algum de comunicação educacional, imperando a ignorância em todos os seus aspecto, notadamente no setor religioso, JOÃO CÍCERO, já um fanático, um psicopata, apoiado pelos pais, parentes e vizinhos, passou a desempenhar o papel de um vulto quase mitológico, lendário, fascinante:PADRE CÍCERO DO JUAZEIRO. Um "Santo", um "Enviado", um "Profeta".
Pessoas incautas passaram a acreditar nas proesas e possíveis milagres desse personagem do embuste, que além de mentalmente doente, ainda era totalmente analfabeto.
Mas JOÃO CÍCERO continuou a "aconselhar" com as palavras decoradas que sua mãe havia lhe ensinado, e que o Padre Cícero do Juazeiro proferia aos romeiros, e a notícia espalhou-se por toda a região. Proprietários rurais influentes economicamente, começaram a apoiar o acontecimento, e as romarias começaram até a casa do futuro "Padre de Gravatá-Açú". Muitas fitas coloridas (ex-votos) começaram a ser postas no pescoço de JOÃO CÍCERO, sequenciadas com beijos nas mãos e toques leves no seu corpo, a espera de milagres e curas outras.
Depois, sem que fosse do conhecimento do Vigário de Lagoa dos Gatos, Padre Ignácio, levavam os auxiliares do fanático, vários adeptos, a fim de conseguirem inclusão na Irmandade do Sagrado Coração de Jesus.
A avó de JOÃO CÍCERO, era conhecida pelo apelido de "CÔCA", e por esta razão os seus seguidores passaram a chamá-lo pelo cognome de "PADRE CÔCO", pois a sua avó era "Côca", e assim ficou sendo chamado até os últimos dias. A partir dessa denominação o fanatismo ficou mais acentuado, pois o fanático começou a "CELEBRAR MISSA", a receber donativos e oferendas diveras, pelo que um senhor chamado Luiz Bernardo, foi o primeiro a denunciar essa profanação acintosa.
Em seguida o "PADRE CÔCO" exigiu aos homens que lhe seguiam, que deviam pelar a cabeça ou pelo menos ter um corte de cabelo muito baixo, pois não permitia que ninguém participasse dos "ATOS RELIGIOSOS" sem o cabelo cortado e chamado de "CABELO DE CANGOTE", naquela época.
José Martiliano, que juntamente com Baié exerciam as funções de "Inspetor de Polícia" na região de Serra Verde, pertencente a jurisdição da Vila de Cupira, 2º Distrito de Panelas, usavam certos esquemas adredemente organizados, a fim de que não ficassem "marcados" dos vizinhos, isto quando tinham que exercer atividades policiais, a exemplo de intimações, prisões, etc., e como a região era e ainda é enorme, e dividida em dois setores a eles afetos como "Inspetores", combinavam para permutarem as dilegências, atuando nas áreas trocadas. O Suplente de Comissário de Cupira era o Sr. José Semeão, enquanto o Delegado de Polícia de Panelas a quem Cupira pertencia administrativamente, era o Sargento Cleodon Barbosa Nunes.
Tendo o Inspetor José Martiliano procurado CÍCERO AMARO DA SILVA, pai do já famoso "PADRE CÔCO" a fim de que o fanatismo e a extorsão terminasse no setor de Serra Verde, este assim lhe respondeu:
"VOCE TEM OS OLHOS DO TAMANHO
DE DUAS URUPENDAS MARTINIANO,
MAS NÃO ENXERGA A DEUS."
E José Martiliano replicou:
" Se for para enxergar a Deus desse jeito eu não quero ter vista."
Face ao rápido mas acalorado diálogo mantido entre José Martiliano e o pai do "PADRE CÔCO", um amigo do Inspetor chamado José Soares, pediu até por Jesus, a José Martiliano que ele fosse embora da casa de Cícero Amaro, pois havia muita gente querendo "pegá-lo" para matar como hereje. O Inspetor de Polícia levava os fatos anormais aos conhecimento das autoridades policiais de Panelas, mas estas, recebendo orientação do Chefe Político de então, Coronel Melinho, que achou por bem para depois, por ser época de eleição.
No dia 23 de maio de 1936, os adeptos do "PADRE CÔCO" soltaram 44 foguetões fabricados pelo pai do fanático que era fogueteiro como já dissemos, isto em sua residência, local das concetrações religiosas, novenário e organização do grupo, que a esta altura estava grande. Aconteceu que alguns dos seguidores mais exaltados, logo após o espoucar dos foguetões, detonaram armas de fogo para o ar. Dois dias depois dessa ocorrência, os seguidores do "Padre" resolveram tomar pela força alguns bacamartes e rifles de proprietários que não formavam com o sistema do "religioso".
Por fim, chegou o dia "D": 28 de maio de 1936, o Sr. João Inácio, amigo e adepto do "Padre Côco", chegava à Vila de Cupira conduzindo um bacamarte para um ferreiro consertar e diante a existência de denúncia contra o mesmo prestada no dia anterior, e ainda pelo aviso dado por Zacarias Rodrigues, dizendo que "o pessoal do Padre Côco, vai invadir Cupira hoje, o Comissário João Semeão prendeu João Inácio, tomando-lhe o bacamarte que trouxera para consertar. Momentos depois chegava à Vila de Cupira os senhores João Daniel de Santana e João Bezerra da Silva, declarando ao Comissário de Polícia que tiveram os seus bacamartes tomados pelos seguidores do "Padre Côco" e dentre os que participaram do saque estava Joaquim Inácio, pai de João Inácio, este último se encontrava preso. Poucos minutos depois o Sr. Abílio Maciel que desempenhava o cargo de 2º Suplente de Comissário na Povoação de Gravatá-Açú, palco de doutrinação dos fanáticos, chegava a Cupira correndo que veio, vestindo apenas uma cueca e pedindo ajuda da Polícia, segundo Martiliano, Inspetor de Polícia que se encontrava no Comissariado.
Dr. Felismino Guedes, Juiz de Direito da Comarca de Panelas, cientificado das ocorrências absurdas que vinham se registrando em Gravatá-Açú, através de informações prestadas pelo Sargento Cleodon Barbosa Nunes, que contava com as informações de um espia chamado Macilon, resolveu pedir urgentes providências do Governo do Estado, embora tardiamente, e com alarmantes e falsas informações, além de muito exagero.
Ao enviar um telegrama ao Chefe de Polícia, o Dr. Juiz de Direito Felismino Guedes, pediu reforço policial para reprimir um levante comunista, estimado em cerca de 500 revoltosos em armas. Ocorre que no ano anterior (1935) havia rebentado em três Estados brasileiros com maior intensidade, a famigerada Intentona Comunista.
Antes porém, que qualquer medida fosse tomada pelo Governo do Estado, Destacamentos da Força Pública dos Municípios de Panelas, Altinho e Lagoa dos Gatos, deslocaram-se até a Povoação de Gravatá-Açú, onde foram recebidos a bala pelos seguidores do "Padre Côco", sob o comando deste, cujo maior reduto se encontrava no recinto da Capela de São Sebastião, Padroeiro do lugarejo.
A primeira morte aconteceu quando denunciaram à Polícia que o Inspetor Antônio Ferreira de Melo era um dos adeptos do "Padre", tendo Soldados da Polícia localizado o mesmo na casa de Antônio Soares, no Sítio Lagoa de Pedra, debaixo de uma cama. Não querendo, ou não podendo sair de imediato para ser preso, os Soldados fuzilaram-no, sem mais delonga.
Logo após o assassinato do Inspetor, os partidários do "Padre Côco" balearam o Soldado Alonso, filho do Capitão José Alvino. E o tiroteio continuava por toda a tarde do dia 28 de maio de 1936. A tarde do mesmo dia, chegava de Caruaru um reforço sob o Comando do Tenente Presciliano, composto de 25 Praças, já não encontrando resistência dos fanáticos, indo o dito Tenente para o lugar "Taboleiro" a fim de efetuar a prisão de duas mulheres para serem interrogadas. No reforço policial do Tenente Presciliano se encontrava o Soldado Capitulino, que mais tarde chegou a ser Delegado de Polícia de Cupira com a patente de Tenente da Polícia Militar de Pernambuco.
O "Padre Côco", perspicaz, conseguiu evadir-se. Depois de tomarem o reduto sob o domínio dos fanáticos, a Polícia providenciou a condução dos corpos dos mortos para Cupira, todos seguidores do "Padre", que foram os seguintes:
01- João Gomes da Silva;
02- João de Cabocla;
03- João Marcação;
04- Amaro de Júlio Delmiro;
05- João Batista Carlota.
João Batista Carlota foi morto pela Polícia dentro da Capela de Gravatá-Açú dando viva a São Sebastião, Padroeiro da localidade.
A mesma Polícia determinou ao Coveiro de Cupira daquela época, Antônio Pedro, apelidado de "Bico de Fogo", que enterrasse todos os corpos numa cova (sepultura rasa) só, o que foi feito. Juntos com os mortos de Gravatá-Açú,veio preso o Sr. Miguel Xixi.
No dia seguinte, chegava proveniente do Recife, dois caminhões repletos de Soldados e munições, fora um carro-prisão, uma ambulância, um carro funerário e uma baratinha (automóvel de luxo na época), este conduzindo quatro Ofiiais Superiores da Polícia. Como tudo já havia terminado, e verificada a falsa informação, pois não havia rebelião ou foco de comunistas, mas pobres fanáticos religiosos, os militares regressaram ao Recife de imediato.
Muitos seguidores do "Padre Côco" responderam presos, a processos criminais na Cadeia Pública de Panelas, havendo quem dizia que alguns presos foram assassinados na Cadeia e outros quando do trajeto Cupira-Panelas, sangrados miseravelmente pela Polícia de então. Outros adeptos foram postos em liberdade após subemeterem-se ao julgamento de um Conselho de Justiça Popular (Juri), dentre outros o Sr. Manoel Leite.
Segundo ainda José Martiliano que é um sobrevivente dessa "Guerra" e residia em Cupira e que me forneceu todas essas informações históricas, o "Padre Côco" (João Cícero Amaro) viveu muitos anos depois desse conflito e que comprara um Sítio no Município de Palmeiras dos Índios em Alagoas e um outro no Município de São João em Pernambuco, viveu e trabalhou sossegadamente. E assim acabou a "Guerra de Gravatá-Açú" .
Nossa..essa historia renderia um bom filme!!
ResponderExcluirSou Neto de Amaro Antonio da Silva, que ainda está vivo e era primo do tal Padre Côco. Ele sempre nos conta essa historia. Achei incrível encontrar esse relato tão detalhado.Obrigado.
Sr. Newton, o senhor possui alguma foto alusiva a este evento?
ResponderExcluirBrilhante historia, meu avô Francisco tenório estava presente no acontecido e lembra com riqueza de detalhes do fato . Adorei ler com ele e ouvir essa historia.
ResponderExcluirZacarias Rodrigues meu bisavô, pai de voinho. Martiliano era sobrinho do meu bisavô Zacarias e primo legítimo de voinho. Sempre soube muito sobre essa história.
ResponderExcluirProcuro saber um pouco de minhas origens paterna... Meus avós viveram nesta região a muitos e muitos anos atras.
ResponderExcluirMinha vó se chamava Maria Francisca da Conceição e meu võ José Alves de Luna. Quem ainda tem um biso deve se lembrar. meu võ era conhecido como "Bispo". Obrigada!
Adorei ler essa historia com riquezas de detalhes, pois cresci ouvindo sobre essa guerra pela boca de minha avó Maria Felismina do Espirito Santo, que viu tudo isso da janela de sua casa.
ResponderExcluirminha avó se chamava Maria Felismina do Espirito Santo, vc mora aonde?
ExcluirMinha mãe morava lá ela tinha 8 anos na época hoje ela esta com 92 ela hoje ainda fala desta querra
ResponderExcluirEu só neto do senhor Martiliano
ResponderExcluirMeu pai fraFranci Tenório é vivo e conta essa história tbm
ResponderExcluirE conheceu,Maria Felismina,Martiniano,aliás todas as pessoas desse relato,João Cícero era primo dele
Olá, boa tarde, Sr. Newton. Estou em um projeto sobre a história de Cupira e fico feliz por encontrar tamanho acervo e tão bem detalhado. Utilizei alguns trechos deste artigo e referenciei no meu trabalho (que ainda não tenho ideia de quando terminará, talvez no final do ano).
ResponderExcluirQuando toda essa pandemia passar, ficaria feliz se o senhor puder me receber em sua casa. Meu pai lhe conhece, se chama Airton Lira.
Um forte abraço.
Eduardo Paixão de Lira
Graduado em Licenciatura Plena em História pela Faculdade de Formação de Professores da Mata Sul.
Pós-graduando em Ensino de História pela Faculdade de Formação de Professores da Mata Sul.
Professor da Rede Municipal e Privada.
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